Quangeio

De entre os deuses ibéricos dos quais se sabe muito pouco, há um que é referido em diversas aras pelo nome de Quangeius. Não se conhece qualquer representação, elemento iconográfico ou sequer identificação com uma divindade latina, a juntar à ausência de textos e mitos antigos que atinge de forma universal os panteões da península. Mas apesar disso, o caso de Quangeio nem é dos piores e, do pouco que se sabe, consegue-se ainda assim extrair uma imagem muito básica que, não obstante o seu carácter hipotético, é suficiente para lançar as bases de um culto moderno.

1. A informação
Conhecem-se onze aras dedicadas a Quangeio, quase todas encontradas no que é actualmente território português: duas no concelho do Sabugal, duas no de Penamacor, uma no Fundão, três em Nisa e uma em Borba, a que se juntam uma na região de Cáceres e outra na de Ourense, já no que é hoje solo espanhol. A leitura ou valor de algumas delas não é aceite sem hesitações por todos os académicos, havendo dúvidas sobre a que foi encontrada no Fundão e o contexto da de Borba (Olivares Pedreño 2002: 29.1). Igualmente problemática para alguns é a ara encontrada no concelho galego de Verín, em Ourense, não tanto pela variação mínima do teónimo – Quamgeius em vez de Quangeius – mas pela distância que a separa das outras peças dedicadas ao mesmo deus (Olivares Pedreño 2002: 93.1).

Locais onde se encontraram vestígios do culto a Quangeio.

Locais onde se encontraram vestígios do culto a Quangeio (mapa da minha autoria).

Há assim uma clara concentração no que são hoje os distritos de Castelo Branco e Guarda, espaço que faria parte do território da Lusitânia pré-romana. De notar que, ao contrário do que sucede com as aras encontradas na Beira Interior, as que provêm do Alto Alentejo atribuem epítetos a Quangeio, nomeadamente Tangus e Turicaecus (Monteiro Teixeira 2014: 85); o mesmo sucede com a peça proveniente da província de Cáceres (Freitas Ferreira 2012: 69). E se os achados beirões parecem ter sido dedicados por adoradores indígenas, conforme sugere a onomástica (Monteiro Teixeira 2014: 122; Freitas Ferreira 2012: 69), já na ara encontrada na Galiza o dedicante tinha um tri nomina característico de indivíduos romanos ou romanizados (Freitas Ferreira 2012: 69), o mesmo sucedendo com algumas das peças achadas no Alentejo (Monteiro Texeira 2014: 122). Também da região a sul do Tejo provém também aquilo que será, em hipótese, o mais próximo que se tem de uma ligação a um deus romano, uma vez que um dos altares a Quangeio foi descoberto nas proximidades de dois outros dedicados a Júpiter Repulsor (Olivares Pedreño 2002: 228.1).

2. As interpretações
A etimologia de Quangeio tem sido pouco estudada pelos académicos, predominando a hipótese de Prósper, que fez derivar o teónimo do indo-europeu *kuwon ou “cão” (2002: 310) e atribui a *kwanke/eyo um carácter adjectival. Proposta semelhante fez Francisco Villar em carta a José d’Encarnação, onde o académico espanhol propõe *kuanikio ou “canídeo”, sugerindo que Quangeio seria assim o (deus) canídeo, ora em referência ao animal, ora talvez à estrela Sirius (Encarnação 2002: 15.1).

A julgar pela concentração de altares na Beira Interior, terá sido uma divindade do panteão lusitano ou, pelo menos, da parte interior do que seria a Lusitânia pré-romana. O mesmo padrão de achados permite sugerir que a região junto ao sopé sul da serra da Estrela seria o ponto nuclear a partir do qual o culto se expandiu para territórios vizinhos. Esta ideia é reforçada pelo já referido facto de os altares descobertos na Beira Interior conterem o teónimo sem epítetos, ao contrário do que sucede a sul do Tejo, sugerindo, conforme nota Freitas Ferreira, a irradiação do culto a Quangeio a partir do que são hoje os distritos da Guarda e Castelo Branco (2012: 68-9). Note-se, aliás, que os epítetos Tangus e Turicaecus estão possivelmente ligados a núcleos populacionais (Monteiro Teixeira 2014: 85), podendo por isso corresponder a uma radicação de um culto oriundo de uma região vizinha.

Já para o altar descoberto na região galega de Ourense e que Olivares Pedreño considera dúbio (2002: 93.1), Freitas Ferreira considerou a hipótese de ser o produto de uma migração de populações de sul para norte e que teriam levado consigo algumas das suas tradições, mas como a referida ara foi dedicada por alguém com um tri nomina frequente no noroeste ibérico, a ideia de uma migração perde força (Freitas Teixeira 2012: 69). Mas isto não é suficiente para dar razão às dúvidas de Olivares Pedreño, pelo menos se forem baseadas apenas na distância da ara em relação aos outros achados, dado que não é preciso imaginar uma grande migração para produzir um aparente deslocamento de um culto. Basta um único indivíduo, por ventura um viajante que formou um laço com Quangeio numa terra distante e, regressado a casa ou durante outro périplo, prestou homenagem ao deus.

Quanto ao lugar ou estatuto de Quangeio no panteão lusitano, o único modelo interpretativo que conheço é o de Olivares Pedreño, que tal como para Arentio e Arentia olha para o contexto regional como um todo em vez de pensar em cada culto como uma espécie de ilha. Assim, tomando outros deuses que seriam adorados na mesma região – Beira Interior e a Extremadura espanhola – atribui-lhes funções de acordo com os equivalentes romanos e partindo do princípio de que divindades cujos cultos partilhavam o mesmo espaço não tinham papéis idênticos sob pena de se tornarem redundantes. O que é um pressuposto razoável, embora não seja infalível, por um lado dado o estado fragmentado do nosso conhecimento das religiões ibéricas pré-cristãs e, por outro, porque assume para uma cultura os parâmetros de outra. Ainda assim, usando o modelo de Olivares Pedreño, chega-se a um panteão regional composto por Reve, Bandua e Arentio, deuses que, a julgar pelos vestígios arqueológicos, seriam adorados em mais do que um local e estariam por isso entre os mais importantes da região. E a equivalência com divindades romanas, processo para o qual se tem algumas indicações – por exemplo, a identificação de Reve com o deus Larouco e deste com Júpiter (Olivares Pedreño 2002: 171) – permite chegar à seguinte organização do panteão:

Correspondência de deuses segundo Olivares Pedreño (2002: 219).

Correspondência de deuses segundo Olivares Pedreño (2002: 219).

O que é sem dúvida alguma interessante, senão mesmo apelativo, principalmente quando lhe juntamos a comparação que Olivares Pedreño faz entre Quangeio e o deus celta Sucellus (2002: 219-28). Pelo menos a julgar pela iconografia, a divindade gaulesa estava associada à prosperidade, ao submundo e à soberania (Green 2011: 125). O que fornece um exemplo para Quangeio, que para além de um possível elo canídeo por via da etimologia do teónimo, poderia ter ainda uma ligação a Júpiter – conforme sugerido pela já mencionada proximidade de altares a sul do Tejo – mas também ao submundo se seguirmos o modelo interpretativo de Olivares Pedreño. Ainda a respeito da etimologia e da raiz em *kuwon ou “cão”, a mesma informação levou Jorge de Alarcão a propôr para Quangeio uma função semelhante à de Hermes como companheiro de viagem ou protector dos viajantes (2009: 105). E Sílvia Monteiro Teixeira refere ainda a hipótese de o nome do deus derivar de um grupo humano que se auto-denominaria “os cães” (2012: 85). O que não é impossível e aliás, a respeito da sugestão de Jorge Alarcão, vale a pena recordar a ara encontrada na região galega de Ourense – distante das outras e por isso talvez o produto de uma viagem. Mas o pouco que se sabe não inclui indícios concretos que dêem força maior a qualquer uma das hipóteses e o próprio Olivares Pedreño admite que a informação é demasiado escassa, pelo que quaisquer conclusões a respeito de Quangeio serão sempre hipotéticas (2002: 228.1).

3. Hipótese de trabalho
Assumindo que a etimologia proposta por Prósper e Villar está correcta e que o nome “Quangeio” tem o sentido de “cão” ou “canídeo”, isso oferece um mundo de possibilidades e nenhuma em concreto. Isto porque os cães têm uma longa história nas culturas humanas e acumularam um vasto conjunto de usos e valores simbólicos: caçadores, guardiões, necrófagos, guias, curandeiros e companheiros e por isso mesmo um símbolo de guerra, prosperidade, saúde, segurança, lealdade, amizade, morte, o submundo ou a viagem para ele. Se Quangeio é um deus canídeo, qual destas funções deve ser-lhe atribuída? Não há nada que nos permita escolher uma ou duas e mesmo a equivalência hipotética a Dis Pater perde força quando se faz a já referida comparação com Sucellus. E assim, em vez de optar, eu proponho uma abordagem diferente: porquê escolher?

Há exemplos bem conhecidos de deuses cuja natureza complexa é expressa por via de um animal com múltiplas camadas simbólicas. Veja-se o caso do nórdico Freyr, que está ligado ao javali, criatura que representa não só a sexualidade e capacidade reprodutiva, mas também a prosperidade e abundância e ainda as virtudes marciais de um animal capaz de ser mortífero. Isto é igualmente válido para a deusa Freyja, que é ao mesmo tempo uma divindade da luxúria, riqueza e guerra. Mas o exemplo mais englobante será talvez o de Epona, deusa cujo nome tem raiz em *epos ou “cavalo” (Maier 1997: 108) e que preside a praticamente tudo o que tenha uma ligação equina. Viagens, cavalaria (e como tal a guerra), mensagens, desporto, agricultura, transporte de bens e desse modo prosperidade, soberania e por aí fora. Se o animal dela desempenha um papel real ou figurativo, ela tem uma palavra a dizer sobre o assunto. Motivo pelo qual eu pergunto-me se Quangeio, nos dias de hoje, não poderá ser para os cães aquilo que Epona é para os cavalos, ligando-o assim à totalidade da carga simbólica dos canídeos, da prosperidade à protecção, viagens à caça, medicina à morte e ao submundo.

Note-se que não estou a afirmar que era assim no mundo antigo, mas apenas a tentar construir uma hipótese de trabalho com algum fundamento histórico e orientada para um culto moderno. Talvez fosse assim no passado ou talvez não. Talvez Quangeio fosse um deus cão no sentido mais restrito, mas, mesmo nesse caso, um alargamento do seu papel não seria algo inédito no mundo das religiões politeístas. Basta pensar no caso da deusa hindu Sarasvati, que de divindade de um rio em particular tornou-se na de praticamente tudo o que flui, incluindo a fluidez figurativa da música, escrita e conhecimento (Jones e Ryan 2007: 387.1). E desse modo, se a atribuição de uma natureza canídea alargada é uma novidade histórica no que ao culto de Quangeio diz respeito, pois que seja.

4. Ideias para um culto moderno
Assim, a melhor forma de abordar o deus seria a de um cinófilo que aborda um cão, ou seja, com respeito, devoção e na volta com alguma coisa para ser oferecida como presente. Aliás, vou mesmo ao ponto de dizer que um gesto que pode ser hoje característico do culto de Quangeio será o esticar da mão para uma imagem ou estátua em saudação ao deus e do mesmo modo que uma pessoa deve apresentar-se a um cão, permitindo que ele nos identifique pelo cheiro.

Saint of Dogs, ©2012-2016 ursulav

Saint of Dogs, ©2012-2016 ursulav

Quanto a datas festivas, uma boa opção moderna seria algures em Julho ou Agosto, por ocasião da chamada Canícula, período que conta já com uma longa tradição de festividades com uma ligação simbólica ao cão. Veja-se o caso da Nemoralia em honra da deusa Diana e que tinha lugar a 13 de Agosto; ou ainda dos santos católicos Cristovão e Roque, cujos dias festivos são a 25 de Julho e a 16 de Agosto, respectivamente. E para além de cerimónias formais, o dia de Quangeio pode – mais do que isso, deve! – ser marcado por gestos de afecção e respeito para com cães. Coisas como oferecer um brinquedo novo, comprar biscoitos especiais, fazer uma doação em dinheiro ou géneros a um abrigo animal, deixar comida na rua para os abandonados ou adoptar um cão se não se tiver já um e houver possibilidade.

Nas orações ou actos de culto, há vários epítetos que podem ser usados para uma maior precisão nas palavras proferidas ou pedidos feitos. Por exemplo, Repulsor ou Guardião para protecção, Médico ou Curador para saúde (do cão ou dos seus donos), Viator ou Caminheiro para viagens, Psicopompo para a condução ou protecção dos mortos (animais e humanos), até mesmo Farejante para auxílio na busca de coisas ou pessoas perdidas.

Já para símbolos de Quangeio, uma vez mais não dispomos de exemplos herdados do passado, há que conceber novos para os nossos dias. Uma hipótese é uma pegada de um cão com uma estrela no meio, simbolizando simultaneamente o animal divino e o corpo celeste que marca a época da sua festividade, ou variações como o busto de um cão encimado por uma estrela. Há nisto também uma referência territorial, uma vez que, conforme se disse e a julgar pelos achados arqueológicos, o antigo culto de Quangeio pode ter tido como ponto central a região no sopé sul da serra da Estrela, montanha que dá nome a uma raça de cão.

Referências bibliográficas
ALARCÃO, Jorge. 2009. “A religião dos Lusitanos e Calaicos”, in Conimbriga XLVIII. Coimbra: Universidade de Coimbra, páginas 81-121.

ENCARNAÇÃO, José d’. 2002. “Das religiões e divindades indígenas na Lusitânia”, in Religiões da Lusitânia. Loquuntur Saxa, coord. José Cardim Ribeiro. Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, páginas. 11-16.

FREITAS FERREIRA, Daniela Filipa de. 2012. Memória coletiva e formas representativas do (espaço) religioso. Dissertação de Mestrado em Arqueologia, Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

GREEN, Miranda. 2011. The gods of the Celts. Stroud: Sutton Publishing.

JONES, Constance e RYAN, James D. 2007. Encyclopaedia of Hinduism. Nova Iorque: Facts on File.

MAIER, Bernhard. 1997. Dictionary of Celtic religion and culture, trad. Cyril Edwards. Woodbridge: Boydell Press.

MONTEIRO TEIXEIRA, Sílvia. 2014. Cultos e cultuantes no Sul do território actualmente português em época romana (sécs. I a. C. – III d. C.). Dissertação de Mestrado em Arqueologia, Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

OLIVARES PEDREÑO, Juan Carlos. 2002. Los Dioses de la Hispania Céltica. Madrid: Real Academia de Historia; Universidad de Alicante.