Um Júpiter ibérico

Uma das tragédias da História antiga ibérica é quão pouco sobreviveu das suas mais antigas tradições religiosas. Não há nada parecido com as mitologias grega, nórdica ou celta, nenhum registo escrito extenso de mitos ibéricos ou de práticas religiosas. Há apenas breves referências em fontes exteriores – como Estrabão – e vestígios arqueológicos, em especial sob a forma de altares onde teónimos e epítetos foram inscritos. Essencialmente, tem-se os nomes de divindades, pouquíssima iconografia e nenhuma narrativa. É uma tradição perdida.

No entanto, não culpem o cristianismo por isso ou pelo menos não na maior parte. A eliminação e assimilação das antigas tradições religiosas da península Ibérica foi, primeiramente, fruto da conquista romana do território. A conquista romana pré-cristã. Porque à medida que os novos governantes se radicavam, o mesmo acontecia com os seus modos e costumes, da língua às leis e, sim, religião. Há uma razão pela qual quase todos os altares que preservaram nomes e títulos de antigas divindades ibéricas contém inscrições não numa língua celta ou nativa antiga, mas em latim, e têm a forma de altares romanos tradicionais. Há uma palavra que resume esse processo nas suas diferentes manifestações: romanização! Um lembrete de que nem todo a obliteração cultural e religiosa resulta das ações de monoteísmos prosélitos.

Isto é importante, porque há duas coisas que eu quero deixar claras antes de avançar para o cerne deste texto. A primeira é a extensão do que se perdeu e, como tal, do quanto tem que ser criado do zero se se quiser dar às antigas divindades ibéricas um lugar religioso no mundo moderno. Porque não havendo, regra geral, outros dados que não nomes e títulos, uma simples reconstrução não é opção. Há que criar! E apesar disso – e este é o segundo ponto que eu quero deixar claro – eu não guardo qualquer rancor contra a Roma antiga. Honestamente, sinto-me ridículo só por ter que o dizer, porque claro que eu não guardo! Que sentido faria ter uma aversão a uma civilização desaparecida cujas ações ocorreram há mais de dois milénios? É algo obviamente sem sentido, mas… não se subestime a capacidade que alguns politeístas têm de guardar rancores históricos profundos. E para mais, eu pratico o meu politeísmo como uma extensão da minha cultura nativa, pelo que sendo o português um produto da romanização da península ibérica, não teria qualquer lógica rejeitar a latinidade do meu país em favor de uma encenação anacrónica de uma tribo ou civilização desaparecida e há muito subsumida em múltiplas e posteriores camadas identitárias.

E assim, dito isto, o que se segue é focado no deus ibérico pré-romano Reue, sobre o qual eu escrevi um texto há alguns anos atrás, quando abri este blogue, resumindo os dados sobreviventes, aquilo que os estudiosos fazem deles e a minha hipótese de trabalho. De lá para cá, eu tive mais algumas ideias e tenho vindo a construir uma visão mais elaborada do Reue, entretanto já parte plena da minha prática religiosa e objeto de uma atenção crescente da minha parte.

Pastor celestial
Algumas coisas que se sabem ou supõem sobre Reue servem de ponto de partida: achados arqueológicos sugerem um elo com áreas montanhosas e uma proximidade teológica com Júpiter, embora o teónimo ibérico nunca seja empregue como epíteto do romano. Em vez disso, é Larauco (da serra do Larouco, no extremo norte de Portugal) que é usado como título de Reue ou isoladamente com as palavras deo máximo, que são também descritivas de Júpiter. Estamos pois a lidar com um deus joviano, mas um que, por força do seu nome e de acordo com alguns estudiosos, tem ainda uma ligação com o meio aquático, o que não é incompatível com o que se conhece dos papéis de Júpiter e de divindades similares no antigo mundo romano.

Outro ponto contextual é a natureza rural do antigo ocidente ibérico, dado que praticamente não existiam civitates, apenas oppida ou colinas fortificadas, castros. É certo que, à luz de alguns critérios modernos, até muitas das cidades romanas seriam consideradas aldeias, mas no antigo mundo latino havia uma distinção legal e estrutural que eu quis ter em conta.

Destes elementos emergiu um conceito: o Pastor de Nuvens! Parte da inspiração veio de um dos epítetos de Zeus na Ilíada – o Ajuntador de Nuvens – e resume de forma holística o pouco que se sabe sobre Reue – a natureza joviana, a ligação com a água e o contexto rural – ao mesmo tempo que serviu de fértil catalisador para uma torrente de novas ideias sobre ele.

Em concreto: as nuvens são o seu rebanho, o que não só faz de Reue um deus celestial, mas um que está particularmente ligado à chuva e, como tal, à água. No seu aspeto benéfico, ele ajuda a manter os rios e as nascentes, montanhosas e outras, mas quando há chuva torrencial e cheias súbitas, isso pode ser concebido como o seu rebanho enraivecido. O som de uma muralha de água em movimento, uma enxurrada, não é radicalmente diferente do de uma debandada animal. No mesmo sentido, se se ouve trovões, isso pode traduzir-se como o gado de Reue em movimento, mas porque as nuvens movem-se com o vento, também ele fica assim sob a influência do deus. Pense-se na brisa suave como o ar saído da flauta rústica de Reue ou fortes rajadas como os seus cães. Para mais, porque a água é fundamental à vida e prosperidade, ele surge também como um deus da fertilidade, algo reforçado pela sua ligação ao gado. E se o cume de uma montanha está coberto de nuvens, mas sem que haja chuva nas terras mais baixas ou havendo até um céu parcialmente azul na área em redor, veja-se isso como o rebanho de Reue a pastar no cume, com o deus sentado entre o seu gado e a caminhar no solo montanhoso.

Assim, um simples conceito rural, que à primeira vista podia não parecer grande coisa, dá nova e rica vida num deus antigo que surge inicialmente como distante, abstrato, em virtude do pouco que se tem sobre ele no registo histórico.

Árvores e animais
Obviamente, se ele é um deus semelhante a Júpiter, então a árvore de Reue é, sem surpresa, o carvalho. Mas porque ele é um deus do ocidente ibérico, pode-se ser mais específico e ligá-lo não ao mais famoso Quercus robur, mas sim ao Quercus faginea ou carvalho cerquinho. Em alternativa, há também o Quercus suber ou sobreiro, que é também a árvore nacional de Portugal.

E quanto a animais, o touro ou boi branco é uma escolha óbvia, tal como a ovelha e o carneiro, assim como o cão, todos eles dentro do universo do pastor. Já as aves são um ponto ainda pouco claro para mim, embora haja a águia, tanto a Aquila chrysaetos como a Buteo buteo, e também seja de considerar o milhafre-preto (Milvus migrans) e até a cegonha preta (Ciconia nigra).

É notória aqui alguma divergência em relação aos animais tradicionalmente associados a Júpiter, mas não há nisso qualquer problema. Por um lado, porque é de esperar que o enfase rural de Reue tenha como resultado algumas diferenças e, por outro, eu não os vejo como sendo a mesma divindade, pelo que, também por isso, é de esperar que haja divergências.

Rei e corte
O que me leva ao ponto seguinte, pois se Reue e Júpiter são entendidos como deuses distintos, mesmo que similares em muitos pontos, como é que uma pessoa os pode integrar à maneira de um panteão? E a resposta é de forma hierárquica e funcional. Ou seja, pense-se em Júpiter como um rei celestial com o seu séquito ou corte, da qual outros deuses semelhantes são membros a diferentes níveis. Isto não é diferente de como os gregos e romanos viam a relação entre múltiplas divindades e por isso basta inserir Reue no grupo como uma espécie de príncipe com uma identidade mais rural ou rústica no domínio celestial. Daí as semelhanças e até sobreposição com Júpiter, mas também as diferenças, com o resultado final de integrar num politeísmo romano moderno de um país e cultura latina um deus nativo pré-romano do território desse mesmo país.

A senhora junto à nascente
Há que considerar ainda a deusa nativa Nabia, com quem é possível estabelecer uma ligação com Reue, tanto com base nas suas esferas de influência, como na ideia dele como um pastor. Também tem um elo joviano, dado que é mencionada juntamente com Júpiter num altar encontrado no norte de Portugal. Mas porque ela é com frequência associada a nascentes e rios, a ligação a Reue como que se forma sozinha: ambos exercem influência sobre as fontes e disponibilidade de água, complementando-se até; e no desenvolvimento da ideia de pastor, imagine-se uma cena bucólica em que o guardador de rebanhos depara-se com uma bela senhora junto de um poço ou nascente e os dois apaixonam-se, forjando-se assim um laço entre eles.

Isto não está inteiramente desprovido de base histórica e eu não estou a falar do elo joviano de Nabia. Numa inscrição em Cabeço de Fráguas é listado um sacrifício de gado, juntamente com os deuses a quem ele foi dado, e entre eles está Reve Tre…. Há a possibilidade de as letras finais serem parte de um epíteto que liga Reue à deusa nativa Trebaruna, que é também mencionada na inscrição e, a julgar pelo teónimo, pode ter sido uma divindade do poço ou fonte da aldeia. Que os dois formassem um par faria pois sentido, mas dado que os dois teónimos não aparecem juntos em mais lado nenhum, podiam ser um par com um âmbito geográfico limitado. Em qualquer caso, a hipótese fornece um precedente para uma ligação entre Reue e Nabia.

Como uma letra e um som
Antes de terminar e para que não haja dúvidas, eu não acredito que as nuvens sejam literalmente um rebanho, que o som do trovão seja o de gado e que haja um deus a passeá-lo pelo céu. A noção de Pastor de Nuvens é um meio de compreensão e codificação.

Se se quiser uma analogia muito simples, eu não acredito que o som /a/ se pareça mesmo com a letra A, mas contento-me com o grafema latino tradicional e interajo com o som por via dele. É uma forma de o apreender, representar e dar uso a algo que se ouve, mas não se vê ou toca. E o facto de a letra ser uma representação humana de um fonema não a torna falsa – o seu uso quotidiano e compreensão partilhada fá-la verdadeiro.

Algo semelhante é verdade para Reue: eu acredito que ele é uma entidade real e autónoma, capaz de exercer influência sobre certos fenómenos e atividades e a sua representação como Pastor de Nuvens é uma forma de interagir com ele, de lhe dar forma e sentido. Tal como um grafema é a forma de se conseguir traduzir um fonema, de lhe dar forma e uso, sem que isso queira dizer que o primeiro seja o mesmo que o segundo ou que se pareça mesmo com ele.

E como tal, salve Reue,
o Júpiter Rústico, Jove Ibérico,
o Pastor de Nuvens e Rebanho Trovejante,
O das Brisas e Rajadas,
O da Flauta e Cães,
Amigo Divino de Nabia!

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